2 de abr. de 2012

Teatro do Oprimido: memória e ancestralidade

Teatro do Oprimido:
memória e ancestralidade

Por: William berger
(ator, assistente social e multiplicador do teatro do oprimido)


EXPERIÊNCIAS teatrais COM POVOS TRADICIONAIS NO Espírito Santo: 

os pomeranos I 
(Domingos Martins)


H
 á algum tempo fui alertado pelo poeta Waldo Motta sobre trabalho do psicanalista Carl Gustav Jung. Desde a leitura de “O Homem e seus Símbolos” despertou-se uma chama de auto-conhecimento em mim. Auxiliado por Waldo, me lancei a analisar meus sonhos e os acontecimentos de minha vida desde uma perspectiva simbólica. Quando ainda estava no Rio de Janeiro, de 2009 ao início deste ano (2012), tive contato com o movimento do Teatro Negro. Em oficina no Grupo Nós do Morro, no Vidigal, conheci especialmente a artista Eliete Miranda, que dança a cultura do povo afro-brasileiro com tamanha força e intensidade a ponto de sempre emocionar seu público.
Convidado ao final da oficina para participar de sua Cia de Dança, a Corpafro, Eliete despertou em mim outra chama que veio aumentar o fogo do auto-conhecimento: a importância da memória e da ancestralidade. Durante dois intensos anos entre o trabalho de Eliete Miranda e também com o teatrólogo Amir Haddad e do antropólogo Roberto Damatta (meu professor na PUC-Rio), pude beber intensamente na fonte da cultura negra, também com minha orientadora do mestrado em Serviço Social Denise Pini Rosalém da Fonseca. Tanto Denise como Eliete pesquisam Orixás femininos: Oxum, Obá, Iansã, Nanã, Yemanjá, mergulhando nas raízes mitológicas e no universo social de mulheres-deusas e mulheres-negras da Bahia e do Rio de Janeiro. Denise também pesquisa escritoras negras dos EUA onde fez seu mestrado em Estudos Latino-americanos. Amir Haddad destaca como base de seu trabalho o Carnaval, o Futebol e o Candomblé. Roberto Damatta completa a leitura com seus clássicos “Carnavais, Malandros e Heróis” e “A Bola que Corre Atrás dos Homens”.
De posse dessa sabedoria milenar, e de nossa cultura popular brasileira extremamente diversa, onde o Teatro de Rua de Amir Haddad e o Teatro do Oprimido de Augusto Boal se tornaram o cimento de minhas práticas, passei a me perguntar, no contato com esses artistas e pesquisadores: quais são as minhas raízes, de onde vim, quem sou e onde quero chegar? Uma questão que Waldo Motta também havia me provocado em mais de sete anos de trabalho ao seu lado.
Olhei para trás e vi minha terra, o solo de onde saí, o Espírito Santo, o povo pomerano, também o negro quilombola, de onde tenho raízes com meu avô materno e o povo cigano, o qual herdei também por linhagem materna. Por parte de meu pai: os pomeranos e os alemães, também os descendentes de italianos no Brasil.
Começo esse texto falando de minhas próprias raízes, pois aprendi estar aí o fio da meada, a ponta do novelo. Puxar essa ponta, pode nos possibilitar o eterno retorno à fonte criadora da Cultura onde se encontram em estado de fusão todas as nossas lembranças que remetem à infância e inclusive aquelas das quais não lembramos, mas que fazem parte do substrato comum da memória coletiva e do que Jung chama de Inconsciente Coletivo, onde habitam os Arquétipos, imagens e princípios criadores da humanidade.


No início de 2012 decidi retornar à minha terra e o convite veio da Associação Diacônica Luterana, instituição da IECLB, para atuar na formação de jovens lideranças. O objetivo: ministrar aulas de Comunicação e Expressão e Corpo em Expressão com foco na metodologia do Teatro do Oprimido de Augusto Boal, trabalho no qual venho mergulhando desde o ano de 2004 e do qual ministrei duas oficinas na ADL em 2009 e em 2011.
Além das aulas na ADL recebi a responsabilidade de assumir junto com o pedagogo Gilmar Hollunder o Departamento de Desenvolvimento Comunitário,  a partir do qual propus à instituição oficinas de Teatro do Oprimido para as comunidades e paróquias do Sínodo, com enfoque especial em aspectos da memória e da ancestralidade.
Acompanhado de meu companheiro de trabalho e multiplicador de Teatro do Oprimido  Alex Reblim Braum, a primeira a pedir a nossa presença foi a Paróquia de Califórnia em Domingos Martins, nas serras do Espírito Santo, região fria onde os pomeranos a século e meio vêm mantendo e reiventando seus constumes tradicionais trazidos da Europa no início do século XX, quando aqui chegaram no período da imigração e fugidos do nazismo na Segunda Guerra Mundial. Seguem algumas imagens do trabalho.


Esta árvore centenária, tanto quanto o templo luterano de mais de 140 anos criam uma espécie de equilíbrio com o lago e a casa (Yin e Yang). Ao fundo há uma reserva ambiental onde prevalece a Mata-Atlântica e um clima ameno. Desenvolvemos jogos e exercícios das 5 categorias do Teatro do Oprimido: 1. Sentir Tudo que se toca; 2. Escutar Tudo que se Ouve; 3. Ver Tudo que se Olha; 4. Ativando os Vários Sentidos; e 5. Memória dos Sentidos.  Aplicamos a técnica “Ser Humano no Lixo”, do qual fizeram uma mulher que tem de trabalhar dentro e fora de casa, cuidar da roça e dos filhos, presa à casa, sem tempo para usufruir da vida na comunidade. Seguindo o costume local e uma tradição luterana, ao final da oficina nos juntamos em oração por esse povo e pela humanidade, por familiares e por nossas memórias, dessa vez em torno da árvore ressignificada com nossas experiências teatrais entre corpo, espaço, memória e ancestralidade.


O Corpo, a Árvore e o Espaço



Sentir o espaço e sua dinâmica pela presença desta árvore centenária em mim foi um ponto essencial para intuir algumas direções das reflexões entre corpo e espaço, memória e ancestralidade, propostas para o grupo adequando dessa forma técnicas de Teatro do Oprimido. O jeito doce e a simplicidade, o sorriso do povo pomerano de Califórnia parece estar plasmado no espaço. Povo e ambiente em constante troca. É claro que são muitas as degradações socioambientais, como o desmatamento e os agrotóxicos, o alcoolismo e as drogas entre os jovens principalmente, mas quando se chega a esse lugar, se respira uma aura ancestral.   
A grande árvore-mãe abraça todo o povo. Contaram-me uma história de que certa vez houve um grande conflito na comunidade, uma disputa: alguns queriam derrubar a árvore e depois de muita conversa decidiram mantê-la de pé. O sagrado se “manifestou” e a força desse ser que é a árvore e as memórias que giram ao seu redor e correm vivas em sua seiva mantém viva a comunidade.  Não é por acaso que o símbolo escolhido por Augusto Boal para o método do Teatro do Oprimido é uma árvore. A Árvore é um dos símbolos mais fortes da humanidade. As imagens falam. . .

Árvore do Teatro do Oprimido


Jovem Pomerano. Califórnia (Domingos Martins-ES) 03 de 2012.


Técnicas de Teatro do Oprimido: “Ser Humano no Lixo”


Jovem e criança pomeranas de Califórnia com a revista Metáxis do Centro de  Teatro do Oprimido


Jovens pomeranos: corpos em relação comunitária


Técnica de Teatro Imagem: “Imagem das Palavras”


Técnica de Teatro Imagem: “Imagem das Palavras”


“Viagem Imaginária”: exercício da 4ª categoria do Teatro do Oprimido (ativando os vários sentidos)

Esquema “Corpo em Expressão”


Os africanos têm na árvore Baobá o epicentro de várias culturas. Em torno dela vários povos se reúnem para realizar rituais aos seus ancestrais. A Árvore liga o que vem das profundezas com os céus.  No candomblé do Brasil, por exemplo, Iroko, é um Orixá que é Árvore. Para os orientais o corpo é comparado a uma árvore: a raiz está na base da coluna vertebral, a cabeça é seu topo os membros são galhos: somos árvores ambulantes e movimentamos florestas de pensamento sensível. 
A palavra Religião vem do latim Religare, que significa religar-se ao divino, perdido ou esquecido em nosso corpo. Para os povos tradicionais e também os povos orientais, o religare só é concebível pela experiência corporal. Teresa de Ávila encontrou esse princípio em uma época onde o corpo sofreu uma total  repressão, a Idade Média. O único conhecimento que se valorizava era o simbólico vindo apenas dos homens, a mulher era puta, bruxa ou santa. Com frequência Teresa foi acusada de todas essas alcunhas. Era apenas uma mulher que buscou a Cristo de Corpo e Alma unidos. Cristo não era um ser abstrato, ela o podia tocar e experienciar com seus sentidos.
Sem dúvida, Teresa já preconizava um pensamento Holístico (do grego holos, todo), onde somos um totalidade. Corpo espaço, consciência e ação então inteligados em uma enorme teia. Nenhum ato está isolado.
Pudemos explorar nessa oficina com os pomeranos também a investigação a respeito de uma memória corporal, pois trazemos em nosso corpo as marcas do passado. Cada corpo carrega em si a história do indivíduo, de sua coletividade e da própria humanidade.
Precisamos realizar um resgate da infância da própria humanidade como uma busca da sua ancestralidade. Isso implica a valorização de nossos povos tradicionais, sua história, sua mitologia, sua memória, seu pensamento, sua liberdade, sua dignidade. Tal atitude passa por uma retomada do sentido do sagrado e sua relação com o corpo: o divino habita em nossas entranhas. Tarefa mais que urgente para uma sociedade degradada pela perda da experiência ritual, como um resgate de nossa própria essência.

           Walter Benjamin afirmou que o contato com o divino se produz na linguagem. Destaca o lado mágico desta, quando, por exemplo, Deus nomeia sua criação. A queda do homem do paraíso lhe extraiu a capacidade de nomear as coisas no jardim do Éden; e na Torre de Babel se produziu a “superdenominação”. A linguagem podia agora ser usada para mentir e confundir, e passou a requerer o juízo para se distinguir entre ambos os aspectos (2009, p. 372).
          Não custa lembrar aqui que na cultura dos indígenas Guarani-Mbyá, mestres da oralidade, a palavra assume lugar central. Em seu ritual denominado Nimongaraí, próximo à colheita do milho e das chuvas torrenciais do final do verão, o ceu cheio de raios, manifestação de Tupã, forma o contexto onde o pajé recebe de Deus os nomes das crianças recém-nascidas. Esse nome secreto, dado apenas aos que fazem parte de sua cultura, designa o destino do indivíduo. Para alguns, seu nome indígena é tão secreto que não pode ser revelado a ninguém além do pajé e a si próprio, caso contrário a pessoa poderia perder a própria vida.



Considerações finais

           O resgate das memórias dos povos tradicionais presentes em nossos corpos, base simbólica de gestos, sons, imagens e palavras, suscita também, em nosso país, a urgência cotidiana de resgate da alteridade e da cidadania negada.

           Isso implica viver o mundo de uma maneira nova: olhar o passado em busca da origem e daí as vozes silenciadas as quais ninguém sabia que aí estavam. Assim não só os vivos, mas os mortos nos fazem demandas (2010). E é em nossos corpos que ecoam essas vozes.
          A experiência significa também os sonhos não cumpridos. O tempo em Benjamin é como um relâmpago fenomenológico. É preciso estar no meio das trevas, pois só pode ver a luz do dia quem é capaz de atravessá-las, nos lembra Santa Tereza D’Ávila. É preciso atrever-se a dar um salto sem saber o que está do outro lado. Ir ao que está silenciado em nós, desqualificado e assim naturalizado, quase como um arqueólogo. A inovação, como futuro está no passado. Temos um corpo e muitas indagações a serem feitas. Um paraíso de possibilidades ou o inferno da ignorância. "As perguntas seguem abertas" (SEPÚLVEDA, 2010).



Referências Bibliográficas

BOAL, Augusto. A Estética do Oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

JAY, Martin. Cantos de experiencia. Variaciones modernas sobre un tema universal. Buenos Aires: Paidós, 2009.

SEPÚLVEDA, Teresa Matus. “Aportes de Walter Benjamin al Trabajo Social Contemporâneo”. Notas da Palestra. Universidade do Chile e PUC-Rio, 2010.

2 comentários:

  1. Olá Willian, tudo bem?
    Meu nome é Mariana, participei do Seminário Raízes e Asas: Curinga III, no Centro de Teatro do Oprimido, com você. Não sei se lembra de mim, pois como foi minha primeira experiência com o grupo de Teatro do Oprimido, cheguei um pouco tímida e trabalhei bastante a escuta, para absorver este mundo de preciosas informações e para analisar cada detalhe dos debates.
    Eu sou aluna da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense e a um ano venho acompanhando o trabalho da professora Beatriz Venancio, também Assistente Social e doutora em teatro, que realiza uma disciplina que procura fazer a articulação da linguagem teatro com o Serviço Social, tendo como objeto de estudo a estética do teatro do oprimido, sistematizada pelo Augusto Boal.
    Atualmente estou escrevendo meu trabalho de conclusão de curso baseada nisso, o título é: Um Curinga na minha profissão: A linguagem teatral na formação do Serviço Social.
    A partir da pesquisa, Apresentamos a disciplina como mais uma possível alternativa de contribuir na formação do Assistente Social. Principalmente no que se refere a estimular formas de fazer criativas e propositivas, fundamentais na formação do Serviço Social, além de contribuir no debate referente ao respeito à diversidade, tendo como uma das propostas apresentar um pouco desta diversidade, fazendo um passeio pelas culturas.
    Trazemos a experiência com a linguagem teatral para também colaboramos com a dimensão técnico-operativa da profissão, entendendo que ela está intimamente ligada ao atual projeto ético político profissional de nossa categoria, sobretudo nos “aspectos de defesa de direitos, na atuação profissional numa perspectiva emancipatória e desalienadora.”
    Enfim, este trabalho esta em processo inicial e não esta sendo fácil. Gostaria muito de contar com o grupo para a elaboração do mesmo e dizer que ver o seu blog e trabalhos como o seu dá gás para continuar esta jornada.
    Vou divulgar!! Sucesso, no sentido mais sublime da palavra...

    Beijos
    Mariana Isaac

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    1. OLÁ MARIANA CONHEÇO O TRABALHO DA PROFESSORA BEATRIZ E O CITO NA MINHA DISSERTAÇÃO. TAMBÉM FIZ NA GRADUAÇÃO O TCC SOBRE TEATRO DO OPRIMIDO E SERVIÇO SOCIAL NA PERSPECTIVA DA RECONCEITUAÇÃO. DEPOIS TE REPASSO UMA CÓPIA. DIA 16.04 AS 14:30 NO DEP. DE SERV. SOCIAL DA PUC-RIO SERÁ A DEFESA APAREÇA LÁ E VAMOS MARCAR PARA UM BATE-PAPO. UM ABRAÇO E SUCESSO.

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